quinta-feira, 10 de maio de 2018

Essa é a América, não seja pego desprevenido!


Eu já conhecia o ator Donald Glover, que interpretará o jovem Lando Calrissian, no spin-off de Star Wars sobre Han Solo, ainda este mês nos cinemas. Confesso que só fui apresentado ao seu alter ego Childish Gambino com a divulgação do bombástico This is America.

Fico impressionado com o alcance das críticas à violência policial e ao racismo nos Estados Unidos, feitas por artistas consagrados, assim como Lemonade, de Beyoncè e o ato de ajoelhar-se durante a execução do Hino Nacional dos EUA por Colin Kaepernick, enquanto atuava pelo San Francisco 49ers na NFL, e o quanto elas trazem reflexões necessárias, por mais que sejam extremamente conhecidas e debatidas por nós Negrxs. Além disso, a semelhança entre a realidade norte-americana e a nossa faz com que nos identifiquemos com sua mensagem.

This is America, dirigido por Hiro Murai e coreografado por Sherrie Silver, especialista em danças africanas, é cheio de referências e uma das primeiras (e mais óbvias) é ao personagem Jim Crow (uma representação grosseira de pessoas Negras, criada por um pseudo comediante e que deu origem ao famigerado "black face"), quando Gambino atira no homem que está tocando violão. O bom da arte é poder interpretá-la da maneira que ela chega aos nossos sentidos, pois, a cada vez que assistimos ao clipe, novas informações aparecem, quando prestamos atenção aos detalhes. As cenas de violência explícita são feitas para chocar, como se a realidade lhe acertasse um soco no estômago. O fato de ser gravado inteiramente em um galpão é o contraste aos clipes mega produzidos, com carrões, cordões de ouro, piscinas e garrafas de champanhe.
Criado por Thomas D. Rice, Jim Crow foi a gênese do "black face" e deu nome às leis de segregação racial nos EUA, entre o século XIX e a segunda metade do século XX.


Outra referência mais explícita está na roupa dos estudantes que dançam ao seu redor, lembrando o massacre de Soweto, África do Sul, em 1976. Além disso, o coral assassinado faz menção à chacina ocorrida na igreja de Charleston, uma das mais tradicionais igrejas Negras dos EUA, em 2015.
Levante de Soweto, na África do Sul, pode ter servido de inspiração para o figurino das crianças que dançam no clipe.

Há várias coisas acontecendo ao mesmo tempo. Enquanto Childish Gambino e as crianças dançam no centro da tela, incontáveis cenas de violência e tumulto se desenvolvem em segundo plano. Podemos fazer várias leituras disso, inclusive autocríticas. A sequência simboliza o tratamento dado pela mídia ao Negro, como mero entretenimento, enquanto a violência explode e nós somos mortos nas periferias. 

A dança pode simbolizar também uma crítica à "geração tombamento" ("I'm so pretty", ou seja, "eu sou muito bonito"), que preza muito pela beleza estética, mas, muitas vezes, é ausente de conteúdo. Lógico que é importante nos reconhecermos como pessoas bonitas, agradáveis e desejáveis, já que toda a estrutura racista ocidental foi criada para nos tentar fazer acreditar no contrário disso. Só que não podemos esquecer que os colonizadores brancos também nos consideravam "burros" e monopolizaram praticamente todo o conhecimento teórico por séculos, enquanto o direito à alfabetização era negado aos escravizados, ou extremamente precário, quando a escravidão acabou e enquanto as leis de segregação racial vigoraram no país. Estudar é a nossa primeira arma no enfrentamento ao racismo. A mesma crítica vale para grande parte dos artistas de Hip Hop que pregam a ostentação ("Eu tô usando Gucci" e "notas de cem, notas de cem", por exemplo), ao invés do empoderamento real da população Negra.

This is America parte do ponto de vista dos Estados Unidos, mas poderia ser em qualquer quebrada do Brasil. Quando ele diz "não seja pego desprevenido" e "homem Negro, consiga o seu dinheiro", Childish Gambino nos alerta para a necessidade de estar atento à nossa comunidade, aos perigos internos e externos e , ao mesmo tempo, correr atrás da nossa sobrevivência. Fique ligado e permaneça vivo!

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